quarta-feira, 22 de abril de 2009

A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Crime Ambiental. Exame Crítico do Ordenamento.

(Ricardo Leal C. Belmonte)

INTRODUÇÃO

Desenvolvimento sustentável, biodegradabilidade, responsabilidade social, soluções inteligentes, reciclagem, fontes alternativas, coleta seletiva, comprometimento ambiental, aquecimento global, produtos ecologicamente corretos, renovabilidade; todos estes termos fazem parte de um elenco não-taxativo de palavras chaves, expressões em voga e jargões que, quando não proferidos num contexto de modismo demagogo, dizem respeito à nova consciência humana acerca da civilização frente à conjuntura climática e ambiental do Planeta Terra.

Destarte, o tema do presente artigo nada mais é além de um desdobramento da preocupação supramencionada, qual seja a da responsabilização penal das pessoas jurídicas em matéria de crimes ambientais. Não obstante, se por um lado não se discute a vinculação destes entes ao comprometimento social e ambiental, posto o seu inestimável grau de relevância e atuação na civilização moderna, na outra mão, a jurisprudência e a doutrina, em quase todo o mundo, ainda não dirimiram a polêmica a respeito da possibilidade de tal responsabilização criminal.

DA PESSOA JURÍDICA

Para a viabilidade de desenvolvimento do assunto, faz-se conveniente analisar a natureza da pessoa jurídica , sob o prisma das principais correntes que trataram do assunto e, na seqüência, relacioná-las ao mote das divergências: a possibilidade ou não da prática da delinqüência por parte destes entes.

A Teoria da Ficção, construção conceitual do civilista Savigny, sustenta a impossibilidade de atuação independente das pessoas jurídicas, quer dizer, enquanto criação humana, elas não teriam vontade própria, mas tão somente seriam guiadas pelas vontades dos seus sócios e dirigentes. Tal pensamento orientou o princípio “Societas Deliquere Non Potest”, que determina a exclusividade da pessoa física quanto à possibilidade da prática de delitos, já que só os seres humanos são dotados de vontade, sendo vigente na maioria dos sistemas penais dos países onde o direito remonta à tradição romano-germânica, incluindo o Brasil.

Em direção contrária, a Teoria da Realidade ou Organicista, que se relaciona ao positivismo de Durkeim e teve em Otto Gierke a sua principal representação, levanta a distinção entre a vontade própria da pessoa jurídica e a soma das vontades dos seus sócios; o direito aqui não seria o criador deste ente, mas somente legitimaria a sua existência. Por conseguinte, aqueles que defendem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, alegam que, consoante esta construção teórica, seria possível a delinqüência por parte destes entes.

A natureza da pessoa jurídica, a despeito do teor meramente abstrato da sua discussão, importa na prática ao fenômeno da criminalidade não-convencional ou neocriminalidade, na qual grupos ou pessoas jurídicas praticam crimes contra um grande contingente de vítimas, quase sempre não identificáveis em sua maioria, via de regra por meios não violentos, acobertando-se pelas lacunas e falhas legislativas para gozarem da impunidade (p.ex., crimes do “colarinho branco” e os próprios crimes ambientais praticados por pessoas jurídicas).

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil possui parco e débil ordenamento penal em matéria ambiental, permeado por disposições em legislação esparsa e desordenada e por normas penais em branco, que têm em sua tônica a dependência de atos administrativos ou outros diplomas legais para a sua efetividade (e.g., normas penais que tipificam o tráfico de animais em extinção têm que recorrer às portarias do IBAMA que definem quais são estes animais), nada fazendo além de punir a desobediência dos comandos administrativos. Ainda assim, os tipos penais ambientais recebem pouca observância pelos membros do MP que, inseridos numa situação calamitosa de violência (pode-se dizer até, uma quase guerra civil) tendem a priorizar outros tipos penais mais relacionados a este contexto social.

A fragmentação das disposições penais em matéria ambiental, a atecnia do legislador e o caráter defasado assumido por muitos tipos do Código (e.g., matéria acerca da poluição de águas não-potáveis, destruição das nascentes...) fazem emergir uma necessidade de reformulação dos diplomas legais, modificando e criando dispositivos que se coadunem à nova realidade e que não mais se remetam aos ultrapassados conceitos do começo do séc.XX. É nesta conjuntura legal que ganha corpo o debate sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas em matéria ambiental.

Embasados na Teoria da Realidade supramencionada e no Direito Comparado (e.g., jurisprudências internacionais, em especial, nos países de sistema common law e Códigos Penais da França e Portugal), os defensores da aplicação da responsabilidade penal para as pessoas jurídicas no Brasil vêm, cada vez mais, buscando soluções doutrinárias para tal implementação - uma vez que o Código Penal brasileiro, mesmo após a reforma de 1984, omitiu-se a respeito - a fim conter a criminalidade não-convencional e a decorrente impunidade das pessoas jurídicas e grupos infratores.

Existe grande celeuma sobre se a Carta Magna brasileira de 1988 contemplou ou não a responsabilização penal para as pessoas jurídicas no seus arts. 173, § 5˚ e 225, § 3˚. Analisando a letra de tais comandos, respectivamente, parece não haver albergue constitucional àquele instituto no primeiro, posto que carece de especificidade, já que não se faz presente o vocábulo “criminal” (ou “penal”), premente para identificar a qualidade da responsabilização; no entanto, por outro lado, parece existir sim tal previsão no segundo artigo, quando o termo “infratores” nitidamente designa tanto as pessoas físicas quanto as jurídicas, atribuindo-se a elas, simultânea e indistintamente, “sanções penais ou administrativas”.

Da edição da Lei n˚ 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) logrou-se a consagração da responsabilidade penal das pessoas jurídicas frente a estes crimes, mas não obteve-se com isso, o fim da controvérsia a respeito da sua adequação aos princípios vigentes no sistema penal positivo e à própria CF/88.

DIVERGÊNCIAS

São inúmeros os argumentos contrários à possibilidade desta responsabilização penal – Luiz Régis Prado (1) -, na medida em que, a priori, é hercúlea a tarefa de sedimentar-se a total compreensão de que as pessoas jurídicas podem vincular-se à noção de culpabilidade. Depois, violaria-se frontalmente o princípio da personalização da pena, instituto basilar do nosso sistema penal, insculpido nos incisos XLV e XLVI do art.5˚ da CF/88. Contraria-se também, o supramencionado princípio “Societas Deliquere Non Potest”. Por último, mas sem exaurir o poder de argumentação desfavorável, restariam afastadas noções como “arrependimento” e “ressocialização”, próprias do escopo do sistema punitivo, na medida em que estes efeitos psicológicos da pena associam-se lógica e exclusivamente ao ser humano; não se conseguiria nada além de uma frágil adaptação desses objetivos ao caráter punitivo do ente jurídico.

O ponto de vista favorável à aplicação desta responsabilidade penal foi semeado ao longo deste artigo em algumas de suas passagens, principalmente na sua introdução, não como prévio posicionamento frente ao tema e sim como exposição necessária das atuais preocupações da sociedade que respaldam a própria existência desta discussão. Ainda assim, vale registrar que as infrações contra o ambiente ofendem interesses coletivos e difusos (neocriminalidade) e a incapacidade de punir-se criminalmente os entes jurídicos pode facilitar a prática destes ilícitos, além de que, quando não possível uma responsabilização individual pelo delito, na sua prática se configuraria um crime sem pena, ainda que houvesse a imposição de reparação administrativa e/ou cível, o que seria um paquidérmico absurdo legal. Ademais, muitas vezes, por conta da própria estrutura organizacional das pessoas jurídicas, resta quase impossível provar o nexo de causalidade entre a ordem do dirigente e o resultado da conduta delituosa, tornando inviável tal responsabilização individual do representante do ente jurídico.

DA EFETIVAÇÃO

A responsabilidade penal das pessoas jurídicas em matéria ambiental se operaria pela aplicação de três tipos de penas: restritiva de direitos, prestação de serviços à comunidade e multa, sendo as duas primeiras, gêneros que albergam várias alternativas de cumprimento. Desta maneira, a lei estabeleceu um elenco de penas compatível com a natureza das pessoas jurídicas e, portanto, devidamente exeqüíveis. Há que se falar ainda numa pena mais rigorosa, prevista no art.24 da lei, qual seja a Liquidação Forçada, quando a pessoa jurídica condenada por ter sido constituída ou utilizada, primordialmente, para “permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime” definido na própria lei, terá seu patrimônio perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.


CONCLUSÃO

É indubitável que o instituto da responsabilização penal das pessoas jurídicas fornece importante segurança pública e é certo que seria salutar a sua aplicação quando não se é possível lançar mão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para alcançar a pessoa física do sócio (este expediente já consagrado antes, em leis especiais) – não obstante, pelo sistema da Responsabilidade Penal Cumulativa, inexiste óbice à cominação das duas responsabilidades (a do sócio ou dirigente e a da pessoa jurídica) simultaneamente, a dizer, elas não se anulam.

Da mesma forma, é indiscutível que o direito deve contemplar as evoluções e mutações dos contextos sociais, políticos, econômicos e ambientais. No entanto, deve fazê-lo em estrita atenção às possibilidades do seu ordenamento jurídico e, no Brasil, é exatamente neste aspecto que reside o problema da aplicabilidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

Os problemas técnicos da legislação esparsa, a enferrujada parte geral do Código Penal, as incongruências presentes dentro da própria Constituição Federal, a bandeira mofada levantada por princípios jurídicos desatualizados, tudo isto forma uma gama de motivos que leva e ainda vai levar, com razão, a decisões jurisprudenciais desfavoráveis ao implemento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas em crimes ambientais. Nada será eficaz ao problema, senão mudanças dantescas no sistema penal, operadas por alterações na letra da Carta Magna, leis extravagantes em sentido contrário ao da parte geral do CP e outras medidas reformatórias do ordenamento.

Ainda assim, a depender do caso concreto e, quando for viável, é necessária a mitigação destes princípios constitucionais que engessam e dificultam a aplicação de expedientes favoráveis à próspera adaptação do direito face às novas demandas sociais e ambientais, como o que aqui agora se trata, em prol da importância dos bens jurídicos tutelados. Há que se afastar argumentos de fácil superação que obstem o estabelecimento destes úteis institutos (v.g., problemas sobre a definição de tempo e lugar do crime), e fortalecer o conceito de responsabilidade social respaldando a penal, em detrimento da idéia de imprescindibilidade da noção de culpabilidade.

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